(Tela de Salvador Dalì)
Uma bela cidadela, em tempos atrás, com cara de Medievo, cercada de belas paisagens e seres obscuros e fantásticos. Cidadela essa de muita festa. Circos, tendas, cenas e muita música.
Havia três rapazes de dom fenomenal. Eram músicos habilidosos e amigos inseparáveis. Entre eles não havia ciume, desconfiança ou egoísmo. Seus nomes eram Alberto, Gilberto e Roberto. Alberto, o mais velho dos amigos tocava viola, Gilberto, o do meio, tocava maracas, e Roberto, o caçula, cantava. Os três músicos eram quase irmãos, possuíam uma amizade de anos, mesmo sendo jovens. Moravam juntos e tinham uma rotina encantadora. Acordavam às 10h, tocavam até que o sono os derrubasse. Tocavam na rua e ganhavam seu sustento de transeuntes e apreciadores. Eram queridos por todos e apreciados até pelo mais duro crítico. A arte deles só não superava a amizade dos três jovens músicos.
Roberto, caçula dos amigos apaixonou-se. A garota tinha a pele morena clara e cachos negros como a noite. Era cigana recém-chegada à cidade. Roberto a conheceu enquanto cantava com seus companheiros. Os ciganos pararam e observaram. Rosa Maria começou a dançar. Rebolava de modo instigador e envolvente. Até o mais duro coração amoleceria. Roberto soltou a mais bela nota e a sua voz e os gestos de Rosa Maria se misturavam como o dia e a noite se misturam no crepúsculo. Acabada a canção, Rosa partiu, deu tempo apenas de dizer: “Formamos uma bela dupla”.
Alberto e sua sensatez alertaram Roberto: “Ela é víbora traiçoeira! Já sentiu seu perfume? É o cheiro do pecado! Escute, querido amigo, estou te alertando!” Gilberto, como faladeiro que era, dizia: 'Seu nome é Rosa Maria, jovem e impura. Dizem que guarda em sua tenda uma mecha de cabelo de cada homem ou rapaz que ela já levou para o pecado! Fique longe dela!” Roberto, porém, não escutou. Passou a acordar mais cedo e ir cantar e dançar com ela na floresta. Gastava todas as suas forças e o povo já falava: sua voz sumia. Passaram a dizer que Rosa Maria era bruxa e que roubara a voz de Roberto para si. Seus colegas viam o prestígio de anos do trio ir embora. Resolveram fazer uma armadilha.
Numa noite, Roberto, disposto a se declarar de vez à sua amada, pôs-se a caminho do acampamento cigano. Nessa mesma noite Alberto e Gilberto levaram Rosa Maria para sua tenda e a embebedaram. Armaram, na tenda um clima sombrio, como de uma seita maligna. Roberto lá chegando deparou-se com uma festa. Seus instintos musicais fizeram surgir uma enorme vontade de cantar, mas ele tinha um objetivo: achar Rosa Maria e se declarar.
Passou tempo procurando-a e não a encontrou. Decidiu ir embora, mas pelo lado oposto, o lado das barracas. Estava escuro e uma barraca se destacava por seu vermelho intenso e pela luz que irradiava. Havia de fundo uma música desconhecida. Chegou mais perto e afiou os ouvidos. Mesmo assim não identificava a música. Chegou mais perto e sentiu cheiro de frutas. Chegou mais perto ainda, ficou mais perto ainda e reconheceu os cachos de Rosa Maria.
Roberto chamou a amada, mas ela parecia não ouvir. Ele resolveu entrar. Quando abriu a tenda e deu os primeiros passos, ele se esqueceu da música, dos cheiros, do seu objetivo. Rosa, embebedada pelos outros músicos, não entendia o que se passava. Mas viu pelos olhos de Roberto que havia caído em uma cilada.
Roberto berrava: “Bruxa! Morte à víbora e sedutora bruxa! Cobra, cruel e vil, dama adepta da bruxaria! É verdade o que dizem sobre você, tirana!” Agora Roberto chorava e murmurava: “Acreditei em tua dança, em teu sorriso, mas era verdade o que diziam, tu és bruxa de coração amaldiçoado!”
Rosa não entendia e, sem sua total lucidez, não podia se defender. Não entendia as acusações. Roberto correu e ela ficou tentando compreender, mas a alegria dos boêmios e o terror dos que creem, a bebida, a impedia. Caiu num sono profundo, um desmaio, um momento de fuga.
Enquanto isso, Roberto contava aos amigos o que vira. O que Roberto não desconfiava é que os amigos já sabiam, aliás, que tudo havia saído da cabeça deles. Os três combinaram então que, pela manhã, denunciariam Rosa Maria.
Na manhã seguinte Alberto, Gilberto e Roberto foram às autoridades e acusaram Rosa Maria de bruxaria. Assim, então, a cidade toda foi interrogada e todos confirmavam: ela era bruxa. Falavam de sua dança, seus cabelos, seu perfume.
Rosa foi levada e, por unanimidade, foi condenada à forca. Os ciganos se foram, com medo de novas acusações. Os amigos, exceto Roberto, que se compadecia da amada, comemoravam junto com a cidade.
O tempo passou e chegou o dia do enforcamento. As pessoas pegavam seus lugares, inclusive os três músicos. Foi lida a acusação de bruxaria. Rosa Maria, já lúcida, se defendia, afirmando ter sido sabotada por dois jovens mascarados. Apenas uma pessoa acreditou: Roberto. Ele correu até o palanque onde Rosa estava com a corda no pescoço e pediu por compaixão, afirmando acreditar nela. Rosa Maria chorava e a cidade comentava: “Pobre garoto! Enfeitiçado pela cruel víbora!”
Roberto foi segurado e Rosa, morta. O desespero tomava conta do jovem. Ele se soltou e correu para a floresta onde outrora cantava e dançava com sua amada. Arrancou um galho de árvore e cravou no próprio peito, desejando seguir sua Rosa. Na cidade o clima fúnebre dominava e o corpo de Roberto nunca foi encontrado.
Os músicos, agora uma dupla, lamentavam e sofriam por sua culpa. Tocavam músicas ocas, sem voz, acompanhados apenas por um vento leve, que parecia segui-los, como uma melodiosa voz.
(Esta é a história de fantasia escrita pela Camila, baseada na tela Os três músicos de Beatriz Milhazes. Esta é a segunda versão.
A ilustração da postagem remete a outro artista também capaz de inspirar textos dessa natureza, Salvador Dalì)
A ilustração da postagem remete a outro artista também capaz de inspirar textos dessa natureza, Salvador Dalì)
Camila optou por uma fantasia amorosa.
ResponderExcluirA passagem da juventude à vida adulta por meio da paixão, nesse caso, dolorosa, para os amantes e para toda a comunidade.
Permanecer o mesmo, levando a vida sempre igual ou se aventurar no desconhecido? Esse dilema parece provocar a maioria dos heróis e heroínas que conhecemos. Se Roberto ouvisse os amigos e calasse o coração, certamente não haveria história. Ou seja, para que haja uma verdadeira aventura é preciso que se dê ouvidos ao desejo, aos instintos e à intuição.
Por isso podemos afirmar que é preciso aceitar o convite do desconhecido para que haja uma boa história de fantasia. O que era aparentemente bom e normal vira de pernas para o ar, por obra do acaso ou de um simples passo.
Roberto seguiu a voz do coração e a dança de Rosa Maria - essa moça de nome tão inocente.
E uma das preciosidades do texto de Camila é que fica em aberto se ela bruxa ou não. Na verdade, para nós, isso não importa, porque torcemos pelo casal, pelo romance. Torcemos para que o amor triunfe sempre.
A autora consegue nos comover com a crueldade daquele povo, que condenou sem maiores provas e que acabou provocando a morte de um de seus jovens mais talentosos.
Junte-se a isso o talento de Camila com as palavras, as metáforas, e temos aí uma história que remonta a muitos e muitos anos atrás, numa cidade distante - dois outros ingredientes infalíveis da fantasia.
Esse texto me lembrou muito Camilo Castelo Branco, onde o amor é impossível,típico do romantismo, onde os amantes sofrem por suas naturezas. E no final a morte uni o que o homem com suas convicções separou. O legal desse texto é que em momento algum fica explicito o amor da cigana por Roberto, deixando a ideia de que talvés Roberto tenha morrido atoa sem nem ao menos ter sido correspondido, sem ao menos ter tido a oportunidade de se declarar à sua amada.
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