terça-feira, 23 de novembro de 2010

Espelhos - de Paulo


Mandala de M.C. Escher



Meus olhos estão fechados, mas se estou conseguindo pensar claramente, então devo estar acordada. Ou estou sonhando?
Pois bem, irei abrir meus olhos. Minhas pálpebras estão muito pesadas, mas consegui abri-los.
Ainda estava escuro, mas havia uma luz que vinha lá de fora. Então estava numa cabana. Me levantei com cuidado porque meu corpo estava pesado e dormente. Caminhei em direção à luz.

Quando saí da cabana o dia estava nublado. Olhei ao redor e só havia mais cabanas. Saí correndo para nenhum lugar quando começou a chover. As gotas de chuva não me molhavam, não deixavam minhas roupas molhadas, mas deixava minha saia mais leve para andar. Mas algo em mim ficava tocado pela chuva.
Parei de correr do nada e olhei fundo para uma cabana. Era a mais escura de todas, mas de tudo ali era a única que tinha uma cor a mais: uma melancia estragada na porta! Aquilo chamou minha atenção e por isso entrei.
Quando dei o primeiro passo para dentro da cabana, uma brisa forte bate em meu corpo como se tivesse feito eu mudar de local sem tirar os pês do chão. Saí correndo para o fim da cabana, mas o chão do fim da cabana era inclinado. Caí derrapando até meter a cara num espelho. Aquele espelho era o mais brilhante que já vi. Naquele lugar a luz que saía dele era linda, uma luz azul.

Me levantei. Reparei que estava numa sala de espelhos. No teto havia um balão gigante. Numa pequena dança que fazia com os meus reflexos quando numa brisa todos os espelhos racharam em milhares de pedaços. Me debrucei com o coração angustiado e comecei a chorar por muito tempo quando o balão do teto estourou em vários outros balões que, com a luz do espelho brilhante e a rachadura dos outros espelhos, fizeram os balões se tornarem como se fosse outro mundo, como se eu estivesse dentro de um caleidoscópio.
Mas apenas o espelho brilhante que já estava quase se apagando fez um brilho vermelho. Tudo ali ficou vermelho, um vermelho profundo. Quando me deparei com uma mulher linda com roupas chamativas. E ameaçadora de tanto que a roupa dela era colorida e chamativa.
_ Baiana, cigana, gueixa, capoeirista – sussurrei.

Quando vi que ela era apenas o meu reflexo. Vi que eu vestia aquela roupa. Aquele vestido chamativo e colorido era meu.
Continuei dançando quando tudo se apagou. Meu vestido desbotou, caindo no chão a cor vermelha que havia nele... eu... eu estava sangrando? - me perguntei.
No mesmo instante que o sangue sumiu, meu vestido se tornara azul, da mesma cor do brilho do espelho, e pequenos vaga-lumes saíram dele, me levando para a escada de flores lindas.
_ Sol – murmurei bem baixinho. Subi a escada correndo quando me dou de cara com uma plantação de morangos, e no fundo havia uma macieira, que corri dançando até ela.
Quando deparei com um anel vermelho em meu dedo. Quando cheguei à macieira vi que havia uma mala. Abri e tinha três pelúcias: um coelho, o Fófis, que tinha um pandeiro; o leão, o Luca, que tinha uma guitarra, e a tartaruga, Roan, que tinha uma maraca. Lembrei que brincava com elas quando tinha dez anos, que eles eram os três músicos. Sorri.

Me deitei na macieira com os meus bichinhos, olhando o céu e a brisa no meu rosto.
Não, meus olhos, meus olhos estão fechando. Não quero ir embora – fiquei repetindo isso várias vezes quando dormi,.
_ Juliana Raquel, você só tem mais quinze minutos, senão vou subir aí com o chinelo!
_ Eu tô indo, mãe.
Acordei no meu quarto com uma chave na minha mão.
_ Que chave é essa? - me perguntei, quando um vaga-lume sai da minha camisola e sorri com um aspecto de felicidade. Sussurrei:
_ Já entendi de onde é a chave. Tenho de devolver outra noite.


(Esta é a história de fantasia escrita por Paulo, baseada na tela Os três músicos de Beatriz Milhazes. O autor não achou necessário revisar ou reescrever.
A ilustração da postagem remete a outro artista também capaz de inspirar textos dessa natureza)


2 comentários:

  1. Paulo mergulhou sem vacilar na proposta de uma história que guarda poucos vínculos com o real.
    A narrativa é caleidoscópica ela mesma. O mergulho de uma menina num universo de fantasia, que ela não sabe se é real ou não. E mesmo quando acorda (ou pensa acordar?) recebe sinais de que tudo o que experimentou pode ter acontecido de verdade, mesmo que num mundo paralelo.

    É importante notar que muitas história desse tipo guardam um vínculo muito forte entre si. É como se um fio mantivesse unido os autores através dos tempos, por meio da intuição ou da sensibilidade, de modo que alguns elementos ou estruturas se mantém há milhares de anos.
    A história imaginada por Paulo, mesmo tendo claras referências de de narrativas ou filmes, guarda uma originalidade que é anterior a todos nós, e que trazemos guardada na alma.

    Digo isso porque a aventura dessa menina é a trajetória da infância à adolescência. Os espelhos que mostram a moça mais velha (que é ela própria), as cores vermelhas, o sangue que surge de repente, o vôo, a mãe que chama e ameaça (querendo que a menina acorde e se mantenha criança!), e o vaga-lume que sai da camisola e mostra uma chave, chamando para uma trajetória que não tem mais volta.

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  2. Paulo, ao ler seu texto, senti algo interessante e muito marcante: a possibilidade de nos mantermos fiéis às nossas singelezas, às nossas histórias, àquelas que não sabemos que carregamos e que através de um estímulo visual, seja ele formal ou espontaneo dentro de nosso cotidiano, trancas e fechaduras por chaves mágicas são abertas, escancaradas para nosso deleite como leitores, em hiostórias como essa.
    Original, melódico, imagético, rítmico, cresce como a mandala de Escher, equilibrada e demoradamente (no sentido da construção de nossa expectativa) espelhando mundos. E tal qual Alice, Juliana Raquel desperta ou não, mas sabe que tem em si a possibilidade de escolhas.
    E esse éo maior presente de seu texto.
    Parabéns!
    Elaine Perli Bombicini

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